Eles sabiam de nós antes mesmo de nos conhecermos
ficção não é só uma história inventada pra te entreter.
Eu adoro ler ficção. E tenho certa dificuldade em ler livros mais técnicos; estes me exigem bem mais.
Sei que muitos acreditam que ler ficção é só uma forma de entretenimento, torcem o nariz e falam: "Ah, mas é só uma história inventada...". Como se isso fosse pouco.
Essas pessoas provavelmente não tiveram oportunidade de conhecer um clássico da literatura russa, inglesa, ou seja ela qual for. Não tiveram a chance de ler qualquer história que, ainda que escrita há séculos, seja capaz de revelar muito do nosso mundo interior, mais do que qualquer vídeo motivacional de 30 segundos.
Ficção é mais que entretenimento. É um jeito seguro e confortável de visitar dores, contradições e dilemas que vemos o tempo todo no nosso cotidiano.
Acho fantástico ver como alguns autores pareciam já entender, antes mesmo de existir terapia ou qualquer autor de livro de autoajuda, como funcionam nossas fraquezas, angústias e contradições. Eles não precisavam de teses ou Instagram. Bastava papel, tinta e uma vida vivida com intensidade.
Como alguém lá em 1790, 1860, conseguia pensar e escrever tão bem sobre esses assuntos?
A cada página de clássicos seculares, fica claro que eles não estavam apenas escrevendo romances; estavam nos descrevendo.
Se você ainda não teve a oportunidade de ser levado por nenhuma obra de ficção, hoje quero te convidar a visitar esse lugar.
Começando por Kafka, o cara que escrevia por metáforas tudo o que a gente vive hoje: aquela sensação de estarmos presos a um sistema que a gente não entende, tentando se encaixar num papel que não nos cabe, seguindo regras que nunca fizeram sentido.
Ler Kafka é tipo abrir um bloco de notas mental e ir dando check em assuntos que tentamos esconder:
✅ o medo de falhar
✅ a sensação de não se encaixar no meio em que gostaria de fazer parte
✅ o pânico de não ser aceito nem por você mesmo.
Ele usava metáforas pra descrever essas situações, falava de transformações que nos impedem de viver com leveza, prisões que nós mesmos criamos e culpas que não têm nome, mas têm peso.
É comum ler suas obras e perceber que os personagens vivem presos em sistemas caóticos, com regras que não compreendem e sentimentos que paralisam.
Minha sugestão aqui são A Metamorfose e O Processo, onde esses elementos são encontrados facilmente.
A Metamorfose é mais que uma história de um homem que vira inseto. É sobre a desumanização, sobre não caber na própria vida e sentir que sua existência não é mais reconhecida.
Naquela época Kafka nem imaginava, mas hoje isso tem nome: chamamos de burnout, depressão ou crise de identidade.
E aí passamos para o próximo, Sr. Dostoiévski.
E ele não alivia nada pra nós.
Antes mesmo de se falar em inconsciente, ego ou coisas do tipo, Dostô já descrevia o pior do ser humano e humilhava ao escancarar a vulnerabilidade. A sua escrita mostrava que o verdadeiro julgamento não vem de fora, e sim da nossa própria perspectiva.
Seus personagens vivem conflitos morais intensos, e aqui a minha sugestão é Crime e Castigo.
Neste livro, a gente acompanha o personagem principal mergulhando cada vez mais fundo na sua culpa, carregando o peso de uma decisão extrema que tomou. Ele tenta justificar, racionalizar, negar, mas sua consciência não se deixa ser enganada, e essa culpa o devora por dentro.
E o que aprendemos com isso? Que não existe pensamento que consiga calar um coração em conflito. E que a maior punição, muitas vezes, é viver com a nossa própria realidade.
Ele também não fazia ideia, mas hoje temos nomes pra essas questões: ansiedade, autossabotagem, complexo de inferioridade…
Agora vamos trazer uma alma feminina pra esse universo. Que entre a musa das sutilezas, Jane Austen.
Aquela que antes de 1800 já escrevia sobre reprimir desejos e o julgamento da sociedade. Ela mostrava que o amor de verdade exige coragem e uma boa dose de humildade.
Austen sabia narrar as entrelinhas, e fazia isso de forma única. Tanto que, séculos depois, sobrevive e se destaca na literatura.
Em Orgulho e Preconceito, por exemplo, vemos muito mais do que uma história de amor. Essa obra é sobre como julgamos o outro — e a nós mesmos — tendo como base suposições frágeis e superficiais, e como essas suposições moldam nossas decisões.
Orgulho e Preconceito está no meu top 5 preferidos, e por isso ele é minha indicação pra você.
Sou suspeita pra ficar aqui falando como Jane conseguiu, com ironia e inteligência, mostrar como até os sentimentos mais puros podem ser contaminados por orgulho, status e expectativas.
Em suas obras, as coisas são ditas por meias palavras. Tudo é contido, e mesmo assim você sente a profundidade do que ela está narrando.
Algo que ela fazia muito bem, era dar entendimento ao conflito entre o que somos e o que esperam que sejamos. A nossa dificuldade de expressar desejo, opinião e afeto, por medo da etiqueta ou da exclusão.
Se ela estivesse entre nós hoje, saberia que chamamos isso de ansiedade, medo da rejeição ou necessidade de validação.
Já com Tolstói, que também falava dos julgamentos da sociedade, aprendemos a ver isso no universo das relações familiares e da vida comum.
O autor da famosa frase “Todas as famílias felizes se parecem, cada família infeliz é infeliz à sua maneira”*1, entendia algo que muitos de nós ainda estamos tentando digerir: você pode ter uma vida perfeita aos olhos de quem vê, e mesmo assim viver em ruínas por dentro.
Em Anna Kariênina e A Morte de Ivan Ilitch, Tolstói retrata as pequenas tragédias do cotidiano, as fraquezas escondidas em grandes salões e a busca eterna por um sentido.
É possível ver como as convenções sociais podem sufocar, e como uma vida aparentemente perfeita pode esconder um vazio difícil de preencher. Os personagens são intensos, incoerentes e profundamente humanos.
Se vivesse hoje, provavelmente riria do efeito que as redes sociais têm sobre nós — e teria ainda mais certeza de que o ser humano continua tentando parecer o que não é e viver o que não sente.
Saberia que agora isso tem nome: crise existencial.
Percebe que ficção não é "só uma história inventada”?
Não há nada mais real do que uma boa ficção.
Esses autores escreviam o que viam e viviam. Eles conseguiam captar a essência, olhavam para dentro do ser humano e transformavam em palavras escritas o que as próprias pessoas não conseguiam nomear.
E nós, leitores de hoje, temos o privilégio de ter essas palavras eternizadas e de nos sentirmos compreendidos por quem nunca nos conheceu.
E se essas histórias ainda nos tocam, mesmo tanto tempo depois, talvez elas não sejam mesmo “só uma história inventada” para te entreter.
Primeira frase de Anna Kariênina, livro de Liev Tolstói.
Belo texto. E que bela curadoria, Nati!
Esses autores não tinham Instagram, nem IA (rs), mas tinham o dom de ver o ser humano por dentro.
Você articulou com maestria o poder da ficção em revelar o que muitas vezes não conseguimos nomear.
Obrigada por esse mergulho sensível e tão bem conduzido.
Sim, totalmente isso. E antes dos textos literários, os contos e os mitos transmitidos oralmente. Adoro quando Freud diz: "onde quer que eu vá, um poeta chegou lá antes de mim"😅